quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Victor Jara, vida e morte de um cantor revolucionário

Por Diego Cruz,

O genocida Augusto Pinochet morreu em dezembro de 2006 sem nunca ter sido julgado por seus crimes, dentre eles, o assassinato de milhares de ativistas políticos. A ditadura chilena, no entanto, tentou silenciar não só os militantes, mas também toda uma geração de artistas engajados que faziam de sua arte verdadeiras armas de transformação social e de luta contra o imperialismo. O maior deles, o cantor Victor Jara, foi barbaramente assassinado no Estádio Nacional, após ser brutalmente espancado e ter as duas mãos quebradas.


Porém, mais de três décadas após o golpe, enquanto o cadáver do general esfria na cova e sua memória é amaldiçoada tanto por seus amigos quanto pelos inimigos, o canto de Victor Jara ainda ecoa. A maior expressão da chamada “Nova Canção Chilena” ainda arrebata uma legião de admiradores em todo o mundo. Apesar de sua obra ter aparecido em um contexto bem específico do longelíneo país do continente americano, sua temática universal garante a atualidade desse artista que cantou com e para o povo e os trabalhadores.

Eterno retorno
Jara nasceu em 1932 num pobre povoado do Chille, chamado Quiriquina. Seu pai trabalhava no campo enquanto sua mãe cantava músicas folclóricas em velórios de crianças da região. Os humildes moradores daqueles povoados acreditavam que, quando uma criança morria, ascendia aos céus para se tornar um anjo e tomar conta da família. Portanto, celebrava-se o funeral com canções e danças tradicionais.

Dividindo a casa com seis irmãos, o pequeno Victor testemunhava a relação cada vez mais tensa entre seus pais. Seu pai, Manuel, bebia cada vez mais e as brigas com Amanda, sua mãe, tornavam-se freqüentes. Até que, finalmente, Amanda resolve abandonar o campo e, junto com os filhos, tentar a sorte na cidade grande. Em Santiago, ela começa a trabalhar como cozinheira.

Amanda e Manuel seriam, anos depois, os personagens de uma das mais conhecidas canções de Victor, “Te Recuerdo Amanda”, em que ele relata o romance entre um operário e sua mulher, que tem apenas cinco minutos no dia para vê-lo, na hora do almoço.

Te recuerdo, Amanda,
la calle mojada,
corriendo a la fábrica
donde trabajaba Manuel.
La sonrisa ancha,
la lluvia en el pelo,
no importaba nada,
ibas a encontarte con él.
Con él, con él, con él, con él.
Son cinco minutos. La vida es eterna en cinco minutos.
Suena la sirena. De vuelta al trabajo
y tœ caminando lo iluminas todo,
los cinco minutos te hacen florecer
(…)


Jara, já um pouco crescido, começa estudar num liceu católico, ingressando pouco depois na Ação Católica, um movimento fundado em 23 pelo Papa Pio XI com o objetivo de propagar a influência católica. O adolescente Victor já começa ali a desenvolver suas habilidades artísticas, seja com canto ou teatro. Enquanto isso, Amanda, já com seu próprio restaurante, sofre um infarto e morre. A família se dissolve e Victor, profundamente transtornado, entra para o Seminário Redentorista de San Bernardo.

Victor passou dois anos enclausurados no seminário, encantado pela música gregoriana e respeitando à risca a rígida disciplina imposta pela ordem. No entanto, sentindo que não tinha vocação para seguir a vida monástica, Jara deixa o seminário e é, poucos dias depois, convocado para servir o Exército. Após cumprir seu serviço, Victor ingressa em um coro universitário em uma montagem de Carmina Burana, para o Teatro Municipal de Santiago. Pouco depois, já envolvido com o teatro, ele entra para a Escola de Teatro da Universidade do Chile.

Victor Jara tem então uma passagem de sucesso pela vida teatral do país. Ainda estudante dirige, junto com o amigo Alejandro Siveking, a peça “Parecido a la Felicidad”, que percorre todo o país e a América Latina. Ao mesmo tempo, integra o grupo de música folclórica Cuncumén e conhece Violeta Parra, figura que o influenciaria profudamente. Neste período, Jara se aproxima da juventude comunista e do movimento estudantil chileno.

Mas foi mesmo no teatro que Victor Jara primeiro se celebrizou, tornando-se reconhecido internacionalmente. Percebendo sua vocação, após terminar sua formação como ator, ingressa para o curso de diretor. Quando Atahualpa Del Cioppo, um diretor argentino de renome visita o país, exige que Jara seja seu co-diretor para a montagem do “Circulo de Giz Caucasiano”, de Brecht. A sólida carreira teatral o possibilita assumir o cargo de diretor do curso de teatro da Universidade do Chile.

Nova Canção Chilena
A vida e obra de Victor Jara expressam perfeitamente o que foi a Nova Canção Chilena. Um amplo movimento cujo objetivo era resgatar as raízes culturais do Chile e dos povos originários da América Latina, rechaçando a indústria cultural imperialista. Não se tratava apenas de música, como o nome poderia sugerir, mas também de teatro, dança e inúmeros outros aspectos culturais.

Tendo seu auge nos anos 60, a música folclórica foi adotada por grupos de estudantes universitários que viajavam para o interior e investigavam todos os tipos de manifestações da cultura popular. Inúmeros grupos surgiram, como o Quilapayun, do qual Jara foi diretor artístico e Inti-Illimani. Grupos que, embora divididos, continuam em atividade até hoje. Com o ascenso do movimento estudantil e operário, tais grupos assumem uma postura engajada, empunhando letras com temática social.

No entanto, não era apenas a mensagem que se pretendia revolucionária. “Não creio que ser cantor revolucionário signifique só cantar canções políticas. Profundamente revolucionáiro é salvar os valores dos nossos povos da penetração imperialista. O canto mapuche, o canto quéchua, o canto aymará, tem tarefas a cumprir nas transformações de nosso continente”, resume Victor Jara o significado da Nova Canção Chilena,em uma entrevista.

Da mesma forma, a revolução cubana impactou a esquerda chilena e imprimiu um caráter internacionalista à consciência dos artistas. “Devemos nos unir para transformar e formar um continente novo”, pregou Jara.

Politizados, os artistas do movimento engajaram-se de corpo e alma na campanha para a presidência em 1970, viajando o país pedindo apoio ao candidato da Unidade Popular, Salvador Allende. As fronteiras entre artista e militante, discussão que até hoje antagoniza paixões, parecia incompreensível na época.

Toda a esquerda impulsionava o movimento, a ponto da juventude comunista financiar a gravação de discos de artistas do movimento. A Nova Canção Chilena, porém, não se resumiu ao ambiente asséptico das universidades e da classe média. Foi a trilha sonora da revolução chilena, sendo adotada pelos trabalhadores e o povo pobre das poblaciones, as favelas. Grupos de música folclórica e teatro popular multiplicavam-se nas regiões mais pobres do país.

Golpe e martírio
A década de 70, embora tenha começado com a vitória da Unidade Popular, foi o prenúncio do esgarçamento do conflito de classes arrastado nos três anos seguintes. Em 1971, durante a comemoração da nacionalização das minas de cobre pelo governo, um jovem operário amigo de Jara foi morto por um grupo fascista. Victor, transtornado com a tragédia, dedica ao amigo a canção “Cuando Voy al trabajo”, onde reflete a vida do jovem operário:

Cuando voy al trabajo
pienso en ti
por las calles del barrio
pienso en ti
cuando miro los rostros
tras el vidrio empañado
sin saber quienes son, donde van.
Pienso en ti
mi vida, pienso en ti.
En ti compañera de mis dias
y del porvenir
de las horas amargas
y la dicha de poder vivir.
Laborando el comienzo de una historia
sin saber el fin.

Cuando el turno termina
y la tarde baja
estirando su sombra
por el tijeral
y al volver de la obra
discutiendo entre amigos
razonando cuestiones
de este tiempo y destino,
pienso en ti
mi vida, pienso en ti.
En ti compañera de mis dias
y del porvenir
de las horas amargas
y la dicha de poder vivir.
Laborando el comienzo de una historia
sin saber el fin.

Cuando llego a la casa
estas ahi,
y amarramos los sueños.
Laborando el comienzo de una historia
sin saber el fin


A polarização social se aprofunda nos anos seguintes. Jara havia sido demitido da Universidade do Chile mas consegue emprego no departamento de extensão da Universidade Técnica.

O boicote e o estoque de produtos realizados pela burguesia levaram o caos à economia chilena. Impotente, o governo de Frente Popular parece esperar pelo golpe. Já em 1973, o poeta Pablo Neruda aparece na televisão chamando a unidade contra o iminente golpe fascista. No entanto, Allende não só não faz nada, como nomeia Pinochet comandante das Forças Armadas.

Pouco mais de duas semanas depois, Pinochet lideraria o golpe que custaria a vida de Salvador Allende e de milhares de ativistas chilenos. Na manhã de 11 de setembro Victor Jara seguiu a orientação da CUT (Central Unica de los Trabajadores) e foi para a Universidade. Lá, ele e os estudantes tentavam resistir à polícia, enquanto o palácio de La Moneda era bombardeado e Allende entregava sua vida para não ser capturado.

Todos foram presos e levados para o Estádio do Chile. Jara tentou se livrar do documento de identidade para não ser identificado, mas acabou sendo reconhecido por um oficial. No Estádio, o cantor foi torturado por quatro dias. Há controvérsias sobre sua morte. Alguns afirmam que suas mãos foram cortadas antes da execução. Tal versão talvez tenha surgido com a similaridade das figuras de Jara e Che Guevara.

No entanto, relatos de presos presentes no estádio reunidos pela viúva de Victor, Joan Jara, dão conta que o cantor teve as mãos quebradas durante as sessões de tortura. “Canta agora, filho da puta”, foi provocado por um oficial, que havia pedido exclusividade no comando das agressões ao preso. Jara então, no limite de suas forças, pôs-se de pé e cantou a canção “Venceremos”, hino da Unidade Popular:

(…)
Venceremos, venceremos,
Mil cadenas habrá que romper,
Venceremos, venceremos,
La miseria sabremos vencer.

Campesinos, soldados, mineros
La mujer de la patria también,
Estudiantes, empleados y obreros,
Cumpliremos con nuestro deber.

Sembraremos las tierras de gloria,
Socialista será el porvenir,
Todos juntos haremos la historia,
A cumplir, a cumplir, a cumplir
(…)


Foi morto logo em seguida.

Porém, ainda em meio a tortura, conseguiu escrever sua última canção, escondida em pedaços de papel por seus companheiros.

Somos cinco mil
en esta pequeña parte de la ciudad
Somos cinco mil
¿Cuántos seremos en total
en las ciudades y en todo el país?
Sólo aquí, diez mil manos que siembran
y hacen andar las fábricas.

¡Cuánta humanidad
con hambre, frío, pánico, dolor,
presión moral, terror y locura!

Seis de los nuestros se perdieron
en el espacio de las estrellas.

Un muerto, un golpeado como jamás creí
se podría golpear a un ser humano.
Los otros cuatro quisieron quitarse todos los temores
uno saltando al vacío,
otro golpeándose la cabeza contra el muro,
pero todos con la mirada fija de la muerte.

¡Qué espanto causa el rostro del fascismo!
Llevan a cabo sus planes con precisión artera
sin importarles nada.
La sangre para ellos son medallas.
La matanza es acto de heroísmo.
¿Es éste el mundo que creaste, Dios mío?
¿Para esto tus siete días de asombro y de trabajo?
En estas cuatro murallas sólo existe un número
que no progresa,
que lentamente querrá más la muerte.

Pero de pronto me golpea la conciencia
y veo esta marea sin latido,
pero con el pulso de las máquinas
y los militares mostrando su rostro de matrona
lleno de dulzura.

¿Y México, Cuba y el mundo?
¡Que griten esta ignominia!
Somos diez mil manos menos
que no producen.
¿Cuántos somos en toda la Patria?
La sangre del compañero Presidente
golpea más fuerte que bombas y metrallas.
Así golpeará nuestro puño nuevamente.

¡Canto que mal me sales
cuando tengo que cantar espanto!
Espanto como el que vivo
como el que muero, espanto.
De verme entre tanto y tantos
momento del infinito
en que el silencio y el grito
son las metas de este canto.
Lo que veo nunca vi,
lo que he sentido y lo que siento
hará brotar el momento...


Seu corpo só foi encontrado por sua mulher dias depois, com a ajuda de um jovem comunista que trabalhava no necrotério.

Foi o fim de sua vida e o início do mito.

Em pleno século XXI, suas canções ecoam em todo mundo, representando o ideal de artista e militante (ou seria militante-artista?) engajado e disposto a dar sua vida por um mundo melhor. Tanto por suas canções, quanto por sua trágica morte, fruto dos erros da Frente Popular e da ideologia da conciliação de classes, Victor Jara merecerá sempre ser lembrado.